A DEFESA DO PRISIONEIRO
Por Sir Arthur Conan Doyle (1859 - 1930)
A morte da bela miss Ena Garnier, ou pelo menos as circunstâncias dessa morte, tais como foram conhecidas pelo público, e o fato de ter o assassino, capitão John Fowler, recusado toda e qualquer defesa durante o inquérito policial, suscitaram emoção intensa, e a fermentação dos espíritos atingira ao auge quando o irmão do criminoso declarara que essa defesa viria ao seu tempo, esmagadora e indiscutível. Enfim, a curiosidade do público ainda mais se exacerbou quando se soube que o capitão Fowler dispensara a assistência judiciária, reservando-se o direito de fazer sua própria defesa.
No dia do julgamento, o caso, habilmente apresentado pelo promotor, parecia encaminhar-se apara uma condenação — pois restara demonstrado que o acusado estava sujeito a crise de ciúmes —, quando o acusado obteve a palavra.
Era um homem cujo aspecto não poderia passar ignorado em uma multidão: tez bronzeada, olhos enérgicos e estatura de atleta. Sem hesitar, com segurança que mal disfarçava uma profunda melancolia, ele disse:
— Começo por agradecer a generosidade dos senhores advogados, que me ofereceram seus serviços; se os recusei, não foi por que confie mais em minha eloquência, mas, ao contrário, porque julgo que é meu dever trazer a este tribunal unicamente uma exposição de fatos, simples e clara, sem ornamentações de retórica nem efeitos de orador. Assim, os senhores juízes terão diante de si a humilde verdade —a humilde e dolorosa verdade —e poderão formular a sentença perfeita.
“Sou um soldado. Nunca fui outra coisa. Toda a minha vida tem sido dedicada ao serviço do meu país e à honra de sua bandeira. Alistei-me aos quinze anos e obtive minhas primeiras divisas na guerra sul-africana. Por isso, quando começou a guerra com a Alemanha, destacaram-me de meu regimento para me colocarem como instrutor no primeiro regimento de escoceses então organizado em Radchurch, no Essex.
“Foi aí que conheci miss Ena Garnier e confesso que nunca imaginara beleza mais perfeita. Eu sempre acreditara que a expressão ‘apaixonar-se à primeira vista’ fosse uma fantasia de romancistas, mas, desde o momento em que conheci miss Garnier, tive apenas uma ideia, um desejo, uma ambição: — fazê-la minha esposa. Fui tomado de uma paixão frenética, irresistível como um instinto, e todo o mundo, com tudo quanto contém, seria para mim sem importância se eu não pudesse obter o amor daquela criatura. Um só sentimento sobrenadava em meu delírio: — minha honra de soldado.
“Notei, porém, que miss Ena Garnier não era insensível a minhas atenções. Tive ocasião de vê-la muitas vezes na casa do sr. Murreyfield, esquire local, onde era professora, havia já um ano, e tratada carinhosamente como pessoa da família. Parecia-me natural sua simpatia — não por minhas qualidades, mas pelo prestígio de meu uniforme — porque Ena manifestava a cada instante o mais ardente patriotismo: sua voz vibrava de cólera ao falar nas atrocidades cometidas na Bélgica. Eu desejava desposá-la imediatamente; ela, porém, exigiu que só após o término da guerra fosse efetuada a cerimônia.
“Tive, portanto, muito tempo para observar-lhe gênio e as originalidades, que me pareciam encantadores. Seu esporte favorito era o da motocicleta, que manobrava a primor fazendo longos passeios, sozinha, pelos campos. Caprichosa, zombeteira, exaltava minha paixão, sujeitando-me a provações sem conta. Eu tudo suportava. Aquele despotismo inútil parecia-me natural em uma mulher jovem, que se sabe muito amada. Uma dessas provações ‘para me pôr de castigo’ — como dizia — era proibir-me de acompanhá-la em seus passeios de motocicleta. No inquérito, falou-se muito em meu ciúme... Como poderia eu deixar de o ter, apaixonado como estava, diante dos caprichos inexplicáveis de Ena? Verifiquei, pouco a pouco, que ela conhecia muitos oficiais das guarnições de Chelmsford e Colchester. E a motocicleta levava-a, durante horas inteiras, só Deus sabe aonde... “Por vezes, o raciocínio demonstrava-me que era uma loucura comprometer assim minha existência e minha alma por uma criatura que mal conhecia. Porém, Ena sorria — não havia raciocínio que resistisse a seu sorriso.
“Um dia, encontrei sobre a mesa de Ena uma fotografia de homem, tendo nas costas um nome: Huberto Vardin. E o que mais me impressionou foi que o cartão parecia usado como o dos retratos de namorado, que algumas moças trazem ocultamente consigo durante meses... Quando lhe perguntei de quem era aquele retrato, Eva perturbou-se; mas, recobrando prontamente o domínio de seus nervos, afirmou, contra toda a verossimilhança, que não sabia, e que o cartão aparecera sobre sua mesa sem que lhe pertencesse. Tivemos um arrufo. Ela, porém, era tão loucamente sedutora que em pouco eu lhe pedia perdão de minhas suspeitas.
“Na semana seguinte, fui chamado para servir no Ministério da Guerra. A minha posição, embora subalterna, envolvia grande responsabilidade. Tive que ir morar em Londres e meu serviço absorveu-me até os domingos. Somente um mês depois, pude obter alguns dias de licença... malditos dias que consumaram a minha desgraça.
“Parti para Radchurch. A estação da estrada de ferro fica a cinco milhas da vila e Ena veio a meu encontro. Era a nossa primeira entrevista a sós depois que eu lhe dera toda a minha alma e, no enlevo de meu amor, eu confiei-lhe um segredo que não me pertencia, segredo da maior importância... Vou expor-lhes concisamente esse fato, pelo qual me considero mais criminoso do que pelo assassinato daquela criatura. Revelei-lhe um segredo de que dependia o êxito de uma batalha e a vida de milhares de homens.
“Ela impacientava-se com as delongas da guerra, lamentava-se, quase chorava por ver nosso exército detido tantos meses diante das linhas alemãs. Procurei demonstrar-lhe que de fato eram nossas linhas que detinham o inimigo.
“— Mas, então, nada poderemos fazer para libertar a França e a Bélgica? —exclamava ela. — Ficamos eternamente inertes em nossas trincheiras? Oh, não! Dize-me alguma coisa que alimente minha esperança. Há momentos em que parece que meu coração vai estalar...
“— Descansa — disse-lhe sorrindo. — Dentro em pouco terás boas notícias.
“— Sim? — disse ela, segurando-me pelos ombros com entusiasmo quase delirante. — Oh, meu querido!... Conta-me tudo. Quando será isso?
“— Breve.
“— Ora! Com a fleuma do Estado Maior, ‘breve’ bem pode significar ‘para o ano’.
“— Não. Muito menos.
“— Um mês? Ah, meu Deus! Eu não tenho paciência para esperar tanto!...
“— Talvez não tenhas que esperar nem uma semana... “Ela apertou-me as mãos com alegria febril. “— Que felicidade! E quem vai atacar... Nós ou os franceses?
“— Nós e eles.
“— Ah, compreendo: a ofensiva vai partir do ponto em que os dois exércitos se juntam.
“— Não; aí, não. “— Como não? Não se trata de uma ação conjunta?
“ — Tolinha disse-lhe eu, ingenuamente.
— Supõe que os ingleses avançam no setor de Ypres e os franceses no de Verdun... Embora centenas de léguas os separem, a ação não deixa de ser combinada...
“— Ah, compreendo! — exclamou ela com grande alegria.
— Avançam nas duas extremidades da linha, ao mesmo tempo, para que os boches não saibam para que lado enviar reforços...
— Exatamente... avanço simulado em Ypres e verdadeiro diante de Verdun...
“Nesse momento, compreendi que falara demais e detive-me com tal expressão de susto que ela tratou de me tranquilizar.
“— Oh, querido!... Será mais fácil arrancar-me a língua do que obrigar-me a repetir uma palavra do que me disseste. “Que razão tinha eu para duvidar de sua sinceridade? Foi quase tranquilo que montei a cavalo para ir ao campo de Pedley-Woodrow levar ao coronel Worsal uma carta do Ministério. Não cheguei até lá. No caminho encontrei o ordenança do coronel, entreguei-lhe a carta e voltei a procura de Ena com a sofreguidão de um enamorado.
“Entrando em casa do sr. Murreyfield, a criada informou-me de que ela subira para seu quarto. Fora vestir-se, depois de ter mandado preparar a motocicleta. Pareceu-me estranho que ela fosse dar um passeio durante minha visita, que devia ser tão curta. Sentei-me na sala à sua espera e, olhando distraído para o mata-borrão, que estava sobre a secretária, pasmei. Havia sobre o papel vermelho um nome que, embora aparecesse às avessas, saltou-me logo aos olhos, o nome de Huberto Vardin, escrito com a letra resoluta de Ena. Evidentemente, ela escrevera seu endereço, porque após o nome havia as iniciais S. W., que designam uma circunscrição postal de Londres.
“Senti todo o sangue gelar-me nas veias... Ela escrevia àquele homem que afirmava não conhecer...
“Senhores, não tento explicar minha conduta. Num ímpeto de furor, meti mãos à secretária e arrombei-a. A carta ali estava, fechada... não tive escrúpulos em rasgar o envelope... ação ilegal, irregular bem o sei. Mas num acesso de ciúme desatinado eu não refletia. Queria ler aquela carta.
“As primeiras palavras fizeram-me tremer de alegria. ‘Meu caro sr. Vardin’...
“Não era uma carta de amor. Foi o fique mais me interessou, tanto que já ia fechá-la, arrependido de minha violência, quando uma palavra quase no fim da página feriu-me o olhar: feriu-me... é bem o termo — como a picada de uma víbora.
“Essa palavra era “Verdun”.
“Só então notei que a carta era escrita em alemão. Cambaleando, lívido de surpresa e de horror, li-a toda. Era uma narração completa do que eu lhe dissera, acompanhada por outras informações sobre o movimento de tropas nos arredores. Terminava assim: “
‘Espero obter de meu informante a data exata, mas julgo prudente aproveitar o correio holandês de hoje para dar a von Starner estas informações, porque se trata de uma batalha de grande importância. Vou em pessoa levar esta carta a Colchester. Como sempre sua serva fiel Sophia Heffner’.
“Minha primeira impressão foi a de um aniquilamento total... Aquela mulher que adorava, minha noiva, era uma alemã, uma espiã... Mas logo todo o meu pensamento voltou-se para o perigo criado por minha imprudência... Ouvi os passos da miserável na escada. Ao ver-me diante da secretária partida, tendo nas mãos a carta, ela fez um gesto que poderia ser de susto... ou de cólera. Toda a sua fisionomia transtornou-se e, sem uma palavra, num ímpeto de fera, atirou-se a mim tentando arrancar-me o papel. Eu a repeli com força. Atirei-a sobre o canapé e toquei a campainha. O sr. Murreyfield acudiu logo e ficou apavorado ao conhecer a situação. E disse-me com ansiedade:
“— Creio que o senhor não hesitará em entregá-la às autoridades.
“— Nem um minuto — respondi. O que lhe peço é que não a deixe fugir enquanto eu vou avisar prevenir o coronel Worsal, e pedir-lhe uma escolta para levá-la ao acampamento.
“—Vou fechá-la no seu quarto.
“— Não é preciso — disse ela, que parecia ter recobrado toda a calma. — Comprometo a não arredar pé daqui. Nenhum perigo me ameaça. Este belo capitão não me pode denunciar sem confessar ao mesmo tempo que traiu um segredo confiado a sua honra; terá sua carreira cortada... portanto.
“Eu a interrompi rispidamente, dizendo ao sr. Murreyfield:
“— Faça-me o favor de levá-la ao seu quarto.
“Ena foi a primeira a encaminhar-se para o corredor. Mas, chegando à porta, deu um salto para a porta da rua, correu à calçada e alcançou a motocicleta, que ali estava. Precipitamo-nos também e, antes que ela pusesse o motor em movimento, seguramo-la pelos braços. Como uma fera, a alemã voltou-se e mordeu o sr. Murreyfield num pulso. Não conseguimos dominá-la a sem grandes esforços. Foi preciso arrastá-la até a escada, espumando, com os olhos faiscantes. Quando a fechamos afinal, ela começou a soltar verdadeiros uivos de furor.
“— A porta é sólida — disse o sr. Murreyfield, detendo com o lenço o sangue que lhe corria do ferimento. — Em todo o caso, ficarei aqui, no corredor, até que o senhor volte... ficarei com um revólver.
“Corri a Pedley. O coronel partira para inspecionar os postos do litoral. Isso causou-me um primeiro atraso. Depois, todas as formalidades a preencher... assinatura do juiz na ordem de prisão, designação da escolta...
“Alucinado pela impaciência, meti o cavalo a galope e voltei sozinho, distanciando-me de todos. Era já noite fechada. A estrada de Pedley a Woodrow corta a de Colchester a meia milha de Radchurch.
“Mal ultrapassei essa encruzilhada, ouvi o ruído de uma motocicleta lançada a toda a força. Detive-me e observei o caminho atento. O veículo vinha sem lanternas e com velocidade louca. Mas, quando passou diante de mim como um relâmpago, vi, nitidamente, a pessoa que ia pilotando. Essa mulher que eu amara, sem chapéu, com os cabelos ao vento, os olhos fitos e toda a face contraída num ricto de alegria satânica, parecia uma das Valquírias de sua terra natal... Ia já longe, na estrada de Colchester, quando imaginei as consequências de sua fuga. Se ela conseguisse alcançar o cúmplice, a vitória de nossos aliados seria impossível, e milhares de soldados seriam sacrificados inutilmente. Empunhei o revólver e disparei-o por duas vezes sobre a silhueta que se destacava nitidamente no horizonte enluarado... Ouvi um grito, o ruído da queda da motocicleta; depois... o silêncio.
“Não preciso dizer mais nada. Os cavalheiros sabem o resto. Encontrei Sophia Heffner caída de um lado da estrada, morta. Uma das balas de meu revólver a alcançara na nuca. Quando Murreyfield chegou, correndo, arquejante, contou-me que ela fugira pela janela, descendo, com audácia incrível, por um cano das águas pluviais, e somente o ruído da motocicleta, partindo, denunciara sua fuga. Enquanto eu ouvia confusamente sua narração, chegaram os soldados, que vinham prender aquela mulher. E, por ironia do destino, foi a mim que prenderam em seu lugar.
Soldados alemães |
No inquérito policial, ficou estabelecido que o ciúme era a causa do crime. Eu não neguei tal causa, nem apresentei eventuais testemunhas para refutá-la. Era, aliás, o meu desejo que todos acreditassem justamente nisto. A hora da ofensiva francesa ainda não havia chegado, e eu não podia me defender sem revelar o conteúdo da carta. O segredo e o silêncio se impunham. Confesso a minha gravíssima culpa. Mas não a que me impingem. Eu seria responsável pela morte de meus próprios compatriotas se houvesse deixado aquela mulher escapar.
Estes são os fatos, cavalheiros. Deixo o meu futuro em suas mãos. Caso os senhores deliberem pela minha absolvição, alimentarei a esperança de servir ao meu país de forma tal a expiar o pecado de minha enorme indiscrição. E espero, também, que fiquem definitivamente extintas as lembranças que tanto me afligem. Caso os senhores me condenem, eu estarei pronto a enfrentar a consequência que os senhores julgarem adequada à punição de minha conduta.
Créditos:
Versão em português de autor desconhecido.
Texto publicado originalmente na revista "Eu Sei Tudo", edição nº 06, 1917.
Atualização ortográfica e adaptação textual: Paulo Soriano.
O texto apresentado é uma versão condensada, em português, do conto "The Prisioner Defence". Ilustrações: Herbert Paus (1880 – 1946) e Richard Wallace (séc. XX).
0 comentários:
Postar um comentário